quinta-feira, 8 de julho de 2010

Pão & Fonema

"(…) Porquê Pão? Compreende-se perfeitamente a razão do emprego de tal termo. Um dos grandes dramas de Cabo Verde são as secas, crises cíclicas que emolduram a forma de pensamento do homem cabo-verdiano e que o predispõem, pode dizer-se, a um certo fatalismo em relação ao pão do dia a dia. Devido a todo um conjunto de factores de ordem geográfica, as chuvas são erráticas e, devido a outro conjunto de ordem cultural, o homem cabo-verdiano está de tal maneira vinculado à terra - é um agricultor "teimoso" - que mesmo sabendo que não vai chover lança o milho nos campos, na esperança de uma magra colheita. Determinismo ou fatalismo dramático que gira em círculo e que se traduz no binómio milho-chuva que o poeta simboliza ou funde num só termo - pão - e que, ao fim e ao cabo, corresponde à relação binária acima citada: da cópula - milho-chuva - há pão, da não cópula, há fome. Por consequência, no poema, o termo pão conota não só o pão para a boca, a comida do dia a dia, a necessidade primária, mas também a fome a que os Cabo-verdianos se vão habituando, qual fantasma ciclópico ou espada de Dâmocles balançando permanentemente sobre a cabeça do povo, no chão de pedra, mas chão do povo.

Quanto ao emprego do termo fonema, a escolha não podia ser mais acertada. Fonema, em linguística, é o elemento irredutível de qualquer sistema fonético. Linguisticamente falando, fonema não tem muita importância, pois frase é que é fundamental para a denominada compreensão, para a significação. Então porquê fonema e não frase? Fonema, como elemento linguístico, é independente, não implica subordinações ou hierarquias; frase é sempre sujeita a um discurso, com uma estrutura interna que desenvolve normalmente reacções e movimentos. Em Fortes, porém, fonema ultrapassa o elemento sonoro da linguagem, considerado do ponto de vista de uma fisiologia ou de uma acústica. No poema, fonema vem do fundo das goelas, das entranhas da alma, como um grito, como um lamento uníssono de um povo que faz parte integrante há quatrocentos anos e que procura a liberdade e PÃO a que tem direito. Fonema é, no poema, sinal de afirmação de si próprio, como povo, como cultura, como dignidade, como projecção no mundo. Para o povo, fonema é o seu grito de independência, de liberdade, liberdade essencial que vem do não consciente, do não pensado, do não racionalizado, traduzindo ao mesmo tempo um estado de espírito e uma natureza peculiar".

Também no seu estudo interpretativo sobre "Pão & Fonema", a Dr.ª Fátima Fernandes, leitora de Português do Instituto Camões em Cabo Verde, acresce o seguinte:

"(…) E, uma vez que estamos no campo dos símbolos, permitam-nos apresentar um dado curioso - a obra é composta de três partes 1…) Da simbologia dos números, estes levam-nos a atribuir um significado especial à sua presença na obra e a uma compreensão global da mesma. Efectivamente, na palavra pão encontramos três fonemas: 'p', 'ã' e 'o'. Três é universalmente tomado como um número fundamental. O dicionário dos símbolos regista que este número sagrado 'exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Ele sintetiza a tri-unidade do ser vivo ou resulta da conjugação de 1 e 2, produto, nesse caso, da União do Céu e da Terra' (…) Três é a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado. É o acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra, completa a Grande Tríade, e nada mais ajustado ao contexto em que nos apresentamos (…)"

"(…) "Pão & Fonema" é ainda o grito de liberdade de ser substância, palavra e voz. Saciada a fome, o povo canta ao ritmo dos tambores, que na sua plenitude remetem para a tradição africana, e para o momento em que se impôs uma nova linguagem de identidade com África, ao ritmo de festa e de alegria de que só a solidariedade entre os povos é testemunha. É uma das mais antigas formas de comunicação para valorizar e perpetuar a cultura africana e universal. A Árvore, que representa a vida e a natureza, tão adversa à sorte do povo cabo-verdiano, encontra no Tambor a sua metade, também vida, dinamismo, sustentáculo de toda uma cosmogonia (…)"

Texto retirado daqui